Ensaio sobre pastas de dentes, hospitais e casamentos. 

 Coisas me lembram pessoas.

Coisas me lembram pessoas mais do que pessoas me lembram coisas; uma delas são tampas de pastas de dentes – elas me fazem lembrar do meu pai. Não no sentido da luta diária dos pais para lembrar os filhos de escovar os dentes – afinal, eu acredito que na época essa incumbência estivesse mais atribuída as mães. Mas a pasta de dentes – ou, mais especificamente, a tampa – traz à tona a memória do meu pai me contando uma história curiosa.

Alfredo e Célia Antonelli – responsáveis pela higiene bucal de quem vos escreve.

 https://www.instagram.com/alfredo_antonelli_arts/

 

Matrimônio e Pastas de Dentes.

O que ficou gravado na minha memória foi o relato dele, em determinado momento, de ter conhecido a pessoa que havia desenvolvido o tubo de pasta de dentes com a tampa acoplada – aquela que não é rosqueada. Pois bem, até aí nada de extraordinário; entretanto, ele afirmava que esse inventor, possivelmente um engenheiro, se gabava de que sua invenção salvava casamentos, pois, segundo ele, a perda da tampa das pastas de dentes era um dos motivos para brigas e discussões conjugais, e por consequência a erosão daquela instituição, hoje considerada ultrapassada, que é o matrimônio.

Lembro que, naquele dia, fiquei entusiasmado e pensei: “Nossa, o poder das coisas! Um bom projeto pode exercer uma influência tão positiva na vida das pessoas.” Claro, não afirmo que isso tenha sido o motivo determinante para a escolha de me tornar desenhista industrial (vulgo designer), mas, certamente, foi um dos tijolinhos que, ao longo da infância e adolescência – junto com o meu amor por desenhar e inventar coisas – ajudaram a construir essa decisão. Enfim, não vamos nos alongar nesse caminho – embora seja uma história interessante para um perfil em revista de decoração, pode soar um tanto clichê para o que pretendo abordar neste blog.

 

Eu exibindo toda minha saúde dental.

 

 Design no Círculo Polar Ártico.

Anos depois, já me considerando designer, essa experiência pueril foi posta à prova durante minha tese apresentada no Umea Institute of Design, na Suécia. Sim, tive que sair dos trópicos e estudar em uma das melhores escolas de design do mundo para entender que tampas não salvam casamentos e que os problemas precisam ser avaliados antes de tentarmos resolvê-los.

Minha tese foi uma verdadeira aventura. Em vez de escolher um produto corriqueiro, como uma cafeteira ou um aspirador de pó, resolvi investigar um contexto e encontrar uma oportunidade de projeto. Coloquei-me à prova no Hospital Universitário de Umeå e comecei a entrevistar médicos, em busca de problemas consistentes que merecessem minha dedicação durante seis meses, enquanto eu vivia, há dois anos, próximo ao Círculo Polar Ártico.

Sonhando Alto em Umeå.

Eu queria que minha tese fosse sobre algo relacionado à saúde – e não à doença – por isso me pareceu interessante investigar o contexto da saúde da mulher e a área neonatal. Conversei com obstetras e, embora o ambiente da sala ginecológica não tenha me inspirado particularmente, foi incrível dialogar com uma médica sobre as diferenças culturais na saúde feminina entre o Brasil e a Suécia, principalmente no que diz respeito à gestação e o parto. Meu interesse acabou me levando ao campo neonatal, mais especificamente ao tratamento de prematuros nas NICUs (Unidades de Terapia Intensiva Neonatal). Lembro que minha primeira entrevista foi com um neonatologista. E, embora possa parecer que me desviei do tema inicial deste blog sobre tampas de pastas de dentes, peço paciência ao leitor – logo tudo fará sentido, assim espero (risos).

UMEA Institute of Design

 https://www.umu.se/en/umea-institute-of-design/

O Longo Processo do Design para o Usuário – (User Centered Design).

Uma das primeiras coisas que me chamou a atenção foi a incubadora. Porém, logo o neonatologista deixou claro que aquela máquina era perfeita, sem necessidade de melhorias; o problema residia na jornada que o bebê enfrentava antes mesmo de chegar à incubadora. Empolguei-me com a questão e ele me indicou conversar com o enfermeiro-chefe.

Estava, então, prestes a encontrar a minha “tampa de pasta de dentes”, meu propósito nobre. Na entrevista com o enfermeiro-chefe, ficou evidente que a trajetória do bebê prematuro – ou daquele que, por algum problema, precisava ser internado na NICU – era uma verdadeira jornada. Ele tinha que ser transportado em uma incubadora adaptada a um carrinho equipado com baterias, respirador e toda a parafernália necessária para mantê-lo estável. Do momento em que saía da sala de parto até sua chegada à NICU, o neném precisava atravessar um corredor, pegar um elevador – exigindo, assim, um aparato móvel adequado.

Meu projeto parecia estar encaminhado rumo ao sucesso – eu havia encontrado a minha “tampa de pasta de dentes”. Porém, não foi bem assim. Como o engenheiro não salva casamentos com sua invenção, o problema da longa jornada do bebê parecia não residir  em criar um veículo para transportá-lo, mas em repensar o trajeto. Essa dúvida cresceu em minha mente como uma massa cada vez mais pesada: “Será que não existem hospitais com uma planta mais eficiente, em que a sala de parto esteja próxima da NICU?” Diante disso, precisei recomeçar e contatar outros hospitais na Suécia, por telefone e e-mail, para conseguir novas visitas.

Esquema descrevendo a trajetória do bebê prematuro no hospital de Umeå.

 

Um trem de Umeå para Luleå.

O Hospital de Luleå aceitou meu convite. Após uma viagem de trem de duas horas, atravessando o Círculo Polar Ártico, cheguei a Luleå e me deparei com uma maravilha arquitetônica – um prédio novo, bem diferente do Hospital Universitário de Umeå. Ao chegar, fui muito bem recebido por Jenny, uma enfermeira, que, ao ouvir meu projeto, achou curioso – para não dizer engraçado – e me contou que, ali, não havia necessidade de um carrinho adaptado, pois a sala de recuperação com as incubadoras ficava ao lado da sala de parto. Quando perguntei como transportavam o bebê, ela respondeu simplesmente: “Carregamos no colo.”

Voltei de Luleå com uma resposta e um problema. A resposta: NÃO, o problema não se resolverá com uma incubadora móvel, mas com uma reforma radical da planta do hospital – o que estava, obviamente, fora da minha alçada. E o problema, um problemão, era outro: eu precisava de um projeto e o tempo estava se esgotando. Já se haviam passado dois meses e eu tinha uma tese para defender em quatro.

Mães, Bebês e Enfermeiras.

Minha carta na manga era voltar a incubadora e desafiar o Neotalogista. Uma nova pergunta surgiu, a máquina é perfeita para quem? Aos poucos ficou claro, porém, que a máquina original, embora tecnicamente perfeita, não atendia às necessidades emocionais de mães e bebês.

O Neonatologista estava certo ao afirmar que o equipamento não precisava de aprimoramentos sob o ponto de vista da funcionalidade; contudo, se considerássemos a relação entre mãe, bebê e a própria incubadora, constatávamos que ela se apresentava como um monstro tecnológico e frio, afastando a conexão tão essencial entre os dois.

Jenny: A Incubadora para Mães e Filhos.

Dessa percepção, nasceu o projeto da incubadora Jenny, concebida para humanizar o ambiente de cuidado, oferecendo um design que promovesse conforto e proximidade nesse momento tão delicado. O resultado do projeto foi surpreendente. A incubadora Jenny foi muito bem recebida – fui aprovado pela banca e, posteriormente, tive a honra de conquistar o prêmio International Design Excellence Awards – IDEA Silver, concedido pelo IDSA, nos Estados Unidos. Quem sabe conto mais detalhes sobre a história da incubadora Jenny em outro post, mas essa conquista representa para mim o reconhecimento de uma abordagem inovadora: a de colocar as relações humanas e a sensibilidade no centro do design, transformando desafios em oportunidades para um cuidado mais afetuoso.

JENNY: Mother’s Baby Care Bed

 https://www.idsa.org/awards-recognition/idea/idea-gallery/jenny-baby-care-bed/

Conclusão.

Essa, talvez, tenha sido a maior lição do meu mestrado: observar atentamente os problemas. Muitas vezes, insistimos em solucionar questões que nem precisam ser resolvidas ou que demandam uma abordagem completamente diferente. Para resolver o problema da segurança em casa, o verdadeiro desafio não é o ladrão, mas o Estado que falha em suprir as necessidades básicas do cidadão; o problema do lixo nas ruas não se resolve com um robô que o recolhe, mas com cidadãos capazes de discernir entre o certo e o errado.

Da mesma forma, as brigas de um casal não são causadas por roupas espalhadas pelo chão ou por pastas de dentes destampadas – são questões muito mais profundas, que fogem à alçada da engenharia mecânica e se aproximam mais da engenharia do coração.

 https://www.instagram.com/thiago__antonelli/

 Esse texto é assinado por Thiago Antonelli, designer e sócio fundador da Jabuticasa.

Confira os trabalhos da jabuticasa no link: